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As sanções administrativas na nova Lei de Licitações

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O trespasse de atividades estatais para particulares, necessário para a persecução dos objetivos institucionais do Estado, remonta de longa data,[1] dado ao fato de que o Poder Público nunca portou autossuficiência para produzir ou construir tudo aquilo que se apresenta como necessidade para satisfação das demandas coletivas, o que acarretou, assim, e sempre, a colaboração da iniciativa privada.[2]


Com efeito, não há como negar os proveitos quando existe a colaboração de particulares no desempenho das atribuições de administrar, legislar e julgar são de responsabilidade estatal, uma vez que a iniciativa privada, em razão da dinâmica e competição observadas no segmento, é obrigada a inovar reiterada e permanentemente, criando novas tecnologias e produtos, os quais também são aproveitados pela Administração Pública, o que é salutar. Se assim não fosse – por exemplo –, caso o Estado não fosse proprietário de uma indústria automobilística, o que caracterizaria a autossuficiência na produção de automóveis, o patrulhamento e perseguição de criminosos pelas polícias ainda ocorreria com cavalos.


Ocorrendo a colaboração de particulares na gestão da coisa pública, a responsabilidade pela entrega de um bem, a prestação de um serviço ou execução de uma obra, anteriormente realizada pelo pessoal próprio da Administração Pública, é assumida por um terceiro, devendo o objeto contratado ser executado nos moldes fixados pelo Poder Público antecipadamente.


A seleção do particular que fornecerá ou executará aquilo que é necessário para o Poder Público ocorre, em regra, por meio de licitação, em razão da necessidade da observância prevista no art. 37, inc. XXI, da Constituição da República de 1988, estando o procedimento licitatório atualmente disposto nas Leis feds. nos 8.666/1993, 10.520/2002, 12.462/2011, 12.232/2012 e 13.303/2016.


Conforme divulgado pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), o impacto econômico das compras governamentais alcança 20% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.[3] Diante do referido porcentual, não restam dúvidas de que o Estado comprador brasileiro, por meio da União federal, dos 26 Estados, Distrito Federal e dos 5.570 Municípios, apresenta-se como um grande consumidor, adquirindo bens que vão desde objetos comuns e simplórios, como a aquisição de copos descartáveis e café, até objetos complexos, de alto valor agregado, estratégicos, a exemplo da compra de aviões de caça e tecnologia nuclear.


Ante o expressivo mercado de compras governamentais e a necessidade de existência de proteção aos recursos do erário alocados em tal desiderato, a própria legislação estabelece mecanismos para o Poder Público controlar a licitação e a execução do contrato administrativo, de forma a evitar prejuízos à Administração Pública quando da busca da colaboração de particulares para a persecução de seus objetivos institucionais.


Assim, por meio do atual art. 57, inc. IV, da Lei fed. nº 8.666/1993, garante-se a prerrogativa da Administração Pública de aplicar sanções em particulares que incorrem em condutas previstas nos arts. 86 e 87 da referida norma, art. 7º da Lei do Pregão, art. 47 da Lei do RDC e art. 83 da Lei das Estatais, que se apresentam prejudiciais ao interesse público que se busca tutelar mediante objetos confiados à execução por particulares.


Ocorre, todavia, que o estudo do poder punitivo do Estado, quando exerce função administrativa, é extremamente recente[4] e, inobstante a frequência com que são aplicadas as sanções e a gravidade de suas consequências para os particulares, a exemplo da redução patrimonial dos infratores ou afastamento temporário das compras governamentais, as sanções administrativas não detêm disciplina jurídica satisfatória, que permite, de um lado, a proteção dos interesses dos particulares e, do outro, a garantia da efetividade da sanção aplicada. Logo, a fragilidade verificada pode prestigiar a ocorrência de ilegalidades de toda sorte.


Neste sentido, no que tange à aplicação de sanções no âmbito das contratações públicas, nunca existiu e continua a não existir um regulamento mínimo e sistemático na legislação licitatória até então editada disciplinando o exercício do poder punitivo, protegendo e concedendo efetividade às garantias constitucionais, ou arrolando os pormenores do processo sancionatório, garantindo um procedimento mínimo e uniforme a ser observado pela Administração Pública brasileira. O que se vislumbra, todavia, no bojo das Leis feds. nºs 8.666/1993 e 13.303/2016 (Lei das Estatais), é tão somente uma tímida determinação arrolada entre os arts. 86 e 87 e 83 e 84, respectivamente.


Vale a pena asseverar que, quando o Estado impõe sanções no campo penal, nota-se que, por mais ínfimas que sejam, a exemplo das contravenções penais, são impostas por um Poder específico, investido tão somente nesta atribuição institucional, devidamente especializado, que procede ao julgamento de forma imparcial e por meio de um juiz desinteressado na causa, podendo o cidadão recorrer em até três instâncias distintas e autônomas, seguindo um regramento minuciosamente disposto nos Códigos Penal e de Processo Penal e respaldado pelas garantias e direitos individuais estabelecidos na Constituição Federal.


Por sua vez, quando o Estado exerce função administrativa, de forma típica ou atípica, e necessita punir particulares, in casu, no âmbito das contratações públicas, constata-se a inexistência da referida estrutura (que garante, por exemplo, o duplo grau de jurisdição), que as sanções (às vezes muito mais graves do que aquelas aplicadas no âmbito penal) são aplicadas por servidores públicos muitas vezes sem formação jurídica ou técnica relacionada ao objeto da contratação. Somado a isso, a própria Administração sancionadora, juiz na ocasião, é a parte interessada e a prejudicada pela infração administrativa cometida pelo administrado, fato que pode prejudicar a imparcialidade necessária para julgar a situação. Demais disso, afigura-se não ser necessário que o particular acusado de supostamente cometer uma infração administrativa seja defendido por um advogado, defesa que já é obrigatória quando o Estado exerce função punitiva no âmbito penal, fato que pode gerar um prejuízo qualitativo à defesa da peça produzida. Aliás, o eg. Supremo Tribunal Federal editou a Súmula Vinculante nº 5, estabelecendo não ser obrigatória a defesa elaborada por advogado em processo administrativo disciplinar. Assim, estabelece a referida súmula vinculante que, in verbis: “A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”.


Ante tal cenário, o exercício do poder punitivo pela Administração Pública no âmbito das contratações públicas circunda-se de cristalina insegurança jurídica, pois pode ser utilizado de forma descontrolada e sem limitações, sendo esse um campo propício para o cometimento de arbitrariedades de toda sorte, a exemplo da utilização de sanções com desvio de finalidade. Logo, a ordem jurídica à qual a Administração sancionadora deve estrita reverência pode ser facilmente violada, circunstância que tornará ilegítima a sanção imposta ao licitante ou contratado.


Ilustrando, é comum a observância das seguintes irregularidades no âmbito do processo administrativo sancionador, muitas vezes corrigidas pelo Poder Judiciário: aplicação de sanções desproporcionais à infração administrativa incorrida pelo licitante ou contratado; ausência de culpabilidade do apenado, haja vista restar demonstrado nos autos do processo administrativo que a inexecução contratual foi devidamente justificada; imposição de sanção por agente público incompetente; inexistência do duplo grau de jurisdição quando se observa que a mesma autoridade que impôs a penalidade foi aquela que julgou o recurso hierárquico interposto; imposição de sanções inobservando qualquer tipo de formalidade, violando o princípio do devido processo legal; cerceamento do direito de defesa do licitante ou contratado de produzir provas em sua defesa, em razão da autoridade administrativa não franquear vistas ao processo ou dificultar a extração de cópias dos seus autos; aplicação de mais de uma sanção, tendo como arrimo a mesma infração administrativa, o que acaba por transgredir o princípio do non bis in idem; ampliação do alcance e efeito das sanções restritivas de direito; imposição de sanções, sendo ausente qualquer tipo de publicidade estatal em relação aos atos praticados.


Diante deste contexto, é urgente e imprescindível delimitar o poder sancionador da Administração Pública, estabelecendo os limites da atividade punitiva de um Estado Democrático de Direito, conferindo aos particulares a previsibilidade da conduta do agente público quando maneja o instrumental jurídico punitivo, o que protege as garantias individuais, bem como assegura o instrumental necessário para viabilizar a utilização do mecanismo repressor previsto na legislação, oportunidade ímpar que está sendo desperdiçada, conforme abaixo veremos.


Nesse sentido, analisando o sistema punitivo constante do Projeto de Lei do Senado nº 1.292/1995, não podemos deixar de apontar uma pequena evolução do regramento lá vertido, estando o novo sistema punitivo, todavia, aquém do esperado, haja vista a evolução dos estudos das sanções administrativas no Brasil.


No tocante à tímida evolução verificada, observamos no art. 154 da propositura a fixação das condutas antijurídicas ensejadoras de punição de forma individualizada, o que não ocorre no âmbito da Lei nº 8.666/1993, que exige que o ato convocatório as individualize. Em nosso sentir, tal evolução limita o apetite sancionador do Estado, uma vez que será ilegal desencadear um processo sancionatório quando da ocorrência da prática de comportamento que não sejam aqueles não arrolados na nova Lei de Licitações. É importante ressaltar que se copiou o que é verificado no art. 7º da Lei do Pregão, que prevê todos os comportamentos suscetíveis de punição.


Outro avanço observado no art. 155, § 1º, do projeto de lei, é a fixação de mecanismos para garantir a justa carga punitiva como contrapartida proporcional à infração cometida, como a necessidade de observar, no caso concreto, a natureza e a gravidade da infração cometida, as peculiaridades do caso concreto, as circunstâncias agravantes ou atenuantes, os danos que dela provierem para a Administração Pública e a implantação ou aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle.


Demais disso, observa-se da leitura dos parágrafos 2º, 4º e 5º do art. 155 da propositura o correlacionamento das sanções mínimas a serem aplicadas quando da observância das condutas antijurídicas arroladas na lei, ou seja, será garantida pela lei a imposição de uma punição mínima.


Outrossim, o projeto de lei, conforme redação contida no § 3º do art. 155, cessará o problema observado na prática administrativa quando da imposição de multa com conteúdo econômico pífio (fato que não desestimula a prática dos comportamentos antijurídicos, que é objetivo das sanções administrativas) ou de injustiças (quando a punição gera prejuízo econômico demasiado à empresa).


Outro avanço é retirar das mãos de apenas um agente público a condução do processo sancionatório. Conforme observa-se no art. 157 da propositura, quando da condução de expediente punitivo que busca a aplicação da sanção de impedimento de licitar e contratar e a declaração de inidoneidade para licitar ou contratar será exigida a instauração de processo de responsabilização a ser conduzido por comissão composta por dois ou mais servidores estáveis, vale dizer, aprovados no estágio probatório. Pensamos que tal expediente deve também ser garantido pela Lei no caso da aplicação de multa contratual, no mínimo, haja vista o impacto negativo no patrimônio do particular. É extremante salutar tal encaminhamento, uma vez que, por meio de colegiado formado por servidores estáveis, reduz-se consideravelmente a ocorrência de pressão das autoridades sobre o servidor, que pode ser comissionado (sendo a pressão, neste caso, muito maior), que instrui ou conduz o processo sancionador para abrandar, afastar a punição ou impor uma penalidade com conteúdo punitivo excessivamente desproporcional.


Outro progresso estampado na propositura é a ampliação do prazo para apresentação da defesa prévia, alargado para 15 dias úteis, diferentemente do que consta da atual legislação licitatória, que oferece apenas 5 dias úteis para a protocolização do arrazoado em caso de advertência, multa e suspensão do direito de licitar e contratar, e 10 dias úteis no caso de declaração de inidoneidade. Um erro a ser corrigido na propositura é a ausência de prazo legal para a apresentação da defesa prévia no caso da instauração de advertência. Entendemos que o prazo de 15 dias úteis também deve ser estendido neste caso, haja vista que somente com um prazo razoável é possível elaborar um arrazoado adequado, que garanta um efetivo direito ao contraditório e à ampla defesa.


A previsão expressa para produção de provas e apresentação de alegações finais garante oportunidades posteriores àquela verificada na defesa prévia para produzir adequado material probatório e uma nova janela para empreender nova argumentação no expediente punitivo também é uma inovação positiva que merece destaque e aplauso, pois sabe-se da dificuldade de produzir uma boa defesa.


A fixação de prazo prescricional, a exemplo do que já ocorre em outros sistemas punitivos administrativos, como o disciplinar, também é importante e afasta do particular a eterna preocupação de ser surpreendido com uma notificação informando a instauração de um processo administrativo punitivo praticado no passado, fato que torna seguras as relações e afasta perseguições.


Registra-se, por fim, a positivação da desconsideração da personalização da pessoa jurídica sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei ou para provocar confusão patrimonial, o que inexistia expressamente no âmbito do sistema punitivo das contratações públicas.


Realizadas tais considerações, espera-se que o referido assunto amadureça no Senado Federal, de forma a corrigir o atraso verificado, dar cabo às injustiças observadas e trazer segurança jurídica no âmbito das sanções administrativas, tornando atraente o segmento das compras públicas para considerável parcela da iniciativa privada que passa longe dos negócios com o governo.


[1] Sobre a questão, anotou Viveiros de Castro no início do século passado, in verbis: “Denomina-se obras públicas as que são realizadas com intervenção do Estado e tendo-se em vista a utilidade pública, seja qual for a origem do dinheiro empregado. A celebração dos contractos é regulada pelas leis de contabilidade dos respectivos paizes, salvo alguns casos especiaes, exigência e concorrencia publica”. (VIVEIROS DE CASTRO, Augusto Olimpio. Tratado de sciencia da administração e direito administrativo. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1906, pp-197/199)


[2]Vide como exemplo também a determinação contida no art. 10, § 7º, do Dec.-lei nº 200/67: “§ 7º Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e contrôle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução”.


[3] “No Brasil, calcula-se que as compras públicas movimentam recursos estimados de até 20% do Produto Interno Bruto (PIB), segundo dados do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG)” (OLIVEIRA, Bernardo Carlos S. C. M. de; SANTOS, Luis Miguel Luzio dos. Compras públicas como política para o desenvolvimento sustentável. Rev. Adm. Pública, Rio de Janeiro, v. 49, n. 1, p. 189-206, Jan./Feb. 2015. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-76122015000100189&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 10 abr. 2017.


[4] Realizando um excepcional histórico, aponta Ricardo Marcondes Martins, in verbis: “Se o assunto era, num passado recente, praticamente desprezado pela doutrina do Direito Administrativo, na última década passou a ser um dos temas mais explorados, fato esse revelado pelo grande número de monografias específicas publicadas recentemente. Destacam-se: a) a pioneira, decorrente de tese de doutoramento defendida em 1984 na PUC/SP, de Regis Fernandes de Oliveira (a 1ª edição data de 1985, a 2ª edição, de 2005); b) a decorrente da dissertação de mestrado defendida em 1997, na Universidade Federal do Ceará, de Eduardo Rocha Dias, restrita às sanções aplicáveis a licitantes e contratados (1997); c) a decorrente da tese de doutoramento defendida em 1999, na Universidade Complutense de Madrid, de Fábio Medina Osório (a 1ª edição é de 2000; a 5ª, atual, de 2015); d) a decorrente de dissertação de mestrado defendida na PUC/SP, também em 1999, de Daniel Ferreira (2001); e) a também decorrente de dissertação de mestrado apresentada na PUC/SP, em 2002, do magistrado federal Heraldo Garcia Vitta (2003); f) a também decorrente de dissertação de mestrado, defendida em 2004, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, de Marcelo Madureira Prates (2005); g) a também decorrente de dissertação de mestrado apresentada na PUC/SP em 2004, de Rafael Munhoz de Mello (2007); h) Daniel Ferreira, de certa forma, retomou o tema em seu doutoramento, defendido na PUC/SP, em 2008, ao tratar das infrações administrativas (2009); i) mais recentemente, foi publicada monografia específica sobre as sanções administrativas nas licitações e contratos administrativos, fruto da dissertação de mestrado de Francisco Zardo, defendida em 2013 na UFPR (2015)” (MARTINS, Ricardo Marcondes; PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres (Coord.). Comentários ao sistema legal brasileiro de licitações e contratos administrativos. São Paulo: NDJ, 2016. pp. 1000/1001). Também não podemos deixar de apontar outras excelentes dissertações de mestrado existentes, como as da lavra de Renata Fiori Puccetti, intitulada Infrações e sanções administrativas aplicáveis aos particulares em licitações e contratos, de 2010, bem como a de Felipe Blanco Garcia Guimarães Fleury, que recebeu como título As infrações e sanções administrativas aplicáveis a licitações e contratos (Leis 8.666/93, 10.520/02, 12.462/11 e Lei 12.846/13), de 2016, ambas apresentadas na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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